A quem interessa o discurso antiacadêmico?
Não é à toa que nos querem superficiais e generalistas
A ideia para este texto estava na gaveta, mas duas coisas esta semana me fizeram pensar mais sobre ela: uma reportagem que pipocou na minha timeline sobre como influencers mirins estão vendendo para crianças e adolescentes a ideia de que fazer faculdade é besteira; e alguns posts de “futurologistas” dizendo que, no mundo da IA, os especialistas não estão com nada e o bom é ser generalista. Ora, ora se o discurso antiacadêmico não está com tudo?
Ele não é de hoje, infelizmente. Já faz alguns anos que eu deixo o meu doutorado sem nenhum destaque no meu currículo vitae. Isso porque o mercado não só não se importa muito com ele, como vê até com maus olhos. A ideia é que acadêmicos são “especializados demais", lentos, teimosos, pretensiosos, que não têm uma pegada prática, são “cri-cri” ou não sabem falar sem jargão. Isso existe? Até existe, tem acadêmicos que vivem numa torre de marfim. Mas, no geral, é um baita preconceito pensar assim.
Geralmente, o que um doutorado sinaliza sobre alguém é ser uma pessoa bastante comprometida, que dá conta de projetos de longo prazo e (olha só, que loucura!) sabe INOVAR. Essa palavra que o mercado gosta tanto, né? Me diga se uma tese de doutorado não é inovação? É literalmente propor algo que ninguém nunca propôs.
Mas eu queria escrever mesmo sobre esse discurso antiacadêmico e a quem ele serve. Não é à toa que ele esteja tão em voga hoje.
Então, ninguém quer mais fazer faculdade?
“A mensagem é sempre a mesma: escola não dá futuro; trabalho de carteira assinada, idem. Os meninos são um subproduto da cultura coach que se alastrou pelo país nas últimas duas décadas. Ensinam que, com autodisciplina e um mindset adequado, qualquer um pode se tornar milionário pela força do próprio trabalho, sem depender de empregadores ou títulos acadêmicos. Basta, é claro, pagar algumas mentorias exclusivas para descobrir como chegar lá (o influenciador paulistano de 17 anos anuncia ter dado aulas a mais de 10 mil pessoas em um curso online que criou com dois amigos, ambos também adolescentes com ambição milionária)” Matéria da Piauí, escrita por Danilo Marques
Essa matéria destaca também que os inscritos no Enem caíram pela metade nos últimos anos. Um pouco por conta da profusão de cursos online em faculdades particulares que não usam o Enem e um pouco, sim, por uma falta de interesse em ensino superior em um país que não está trazendo muitas garantias para quem estuda (mas menos ainda para quem não estuda, viu?).
Eu fiquei espantada com esses números e em saber que os jovens estão pensando assim, mas depois percebi que fazia total sentido. Imagine crescer vendo gente super jovem tendo uma ascensão social meteórica como influenciador nas redes sociais o tempo todo? Na minha época, mobilidade social era para quem estudava muito ou para quem se tornava jogador de futebol ou modelo, duas profissões que exigiam talentos muito específicos. Não parecia muito uma opção. Então, o lance era estudar. Isso nunca foi nem aberto a discussão. Mas tudo anda muito diferente.
Além disso, com tantos conteúdos sobre tudo disponíveis na palma da mão, não parece que precisamos aprender muita coisa. Basta fazer uma pergunta e receber uma resposta superficial do Google para nos sentirmos satisfeitos. Com a IA, as respostas já vem formatadas e prontas para serem encaminhadas como se fossem nossas. Ah, a IA…
O mundo dos generalistas
Isso me lembra o segundo ponto deste texto. Eu fiquei negativamente impressionada com uns três posts que apareceram para mim com a grande nova sacada dos futurologistas: que agora a onda é ser generalista. Segundo eles, com um ChatGPT hiperpotente, ninguém vai precisar realmente se aprofundar nos assuntos, afinal, a IA já tem todas as informações. Então, o diferencial mesmo seria saber um pouco sobre muitos assuntos a ponto de conseguir fazer conexões entre eles. Isso, segundo esses “especialistas” (ué?), a IA não seria tão capaz de fazer*.
*Sim, eu sei que alguns desses posts foram motivados pela fala do Mike Bechtel na SXSW e a proposta dele parece ser um pouco mais complexa, mas os posts usavam uma oposição mesmo entre especialistas e generalistas ou especialistas e conectores que é bem problemática.
Foram tantas perguntas que ficaram na minha cabeça lendo isso. Primeira: que premissa é essa de que o ChatGPT produz conteúdo super aprofundado? Segunda: como vocês acham que se produz conhecimento de fronteira? A tal da inovação? Se deixarmos o aprofundamento em alguma coisa para as máquinas, vamos ficar rodando em círculos porque elas não são capazes de INOVAR. E eu afirmo isso com convicção e sou capaz de escrever um outro texto só sobre isso. Anota aí, que vai cair na prova:
A Inteligência Artificial não é capaz de inovar e construir conhecimento de verdade.
Terceiro: a ideia de fazer conexões entre as áreas é interessante, mas se você só sabe sobre tudo superficialmente, você vai fazer um bando de conexão errada e sem noção. Quarto, mas não menos importante: a gente só estuda e se aprofunda nas coisas se for para ganhar dinheiro e se valorizar no mercado? Eu sei que esse acaba sendo o fim, porque todo mundo tem boleto para pagar, mas se não houver nenhum prazer em aprender para além de uma função absolutamente prática, caramba, que vida triste.
Mas, tá bom. E para quem esse discurso todo serve? No caso dos futurologistas desses posts, para eles mesmo, porque eles estavam no final tentando vender um curso para você aprender a ser um generalista (eu juro!) e ainda tinha algum nome como “aprender a ser curioso”. Que mundo é esse em que a gente precisa de um curso online para aprender a ser curioso?
A quem esse discurso serve?
Vamos lá! Serve para quem sempre serve: aos detentores do poder. Você já notou como tem gente com medo de universitários e acadêmicos? Todas as fake news sobre as universidades públicas, todos os discursos sobre drogas e sexo nesses ambientes extremamente exagerados e irracionais?
Os filhos que entram na universidade e de repente estão com umas ideias novas assustam pais conservadores. O trabalhador que começa a se qualificar não só tecnicamente, mas desenvolvendo pensamento crítico, é um perigo para o empregador (Imagina se eles se juntam e formam um sindicato?). E o consumidor que começa a questionar seu padrão de consumo, de onde vem as coisas que consome, a ética na produção e por aí vai é uma pedra no sapato do mercado. Imagine o eleitor que começa a entender de política e fiscaliza o que o político anda fazendo? Que pensa e analisa muito antes de votar ao invés de ser levado pelas emoções?
Jovens com tempo para pensar são muito perigosos. Jovens com livros, lendo textos de base, jovens que se comunicam, que se juntam, que criam ideias novas são jovens indesejados. Bons são os jovens consumidos por uma mídia superficial, viciados em pequenos lances de informação. Jovens desejosos de produtos supérfluos, jovens que passam o dia pensando sobre como seus corpos são imperfeitos, jovens viciados em bets, jovens compradores de cursos curtos sobre como ganhar dinheiro sem esforço.
É como bem disse a Tatiane, da newsletter Vida em Itálico, nesse texto aqui que eu recomendo que você leia inteiro porque tem tudo a ver com este:
“a vergonha intelectual não surge do nada. ela é um projeto. quanto menos sabemos, mais fáceis somos de controlar. mais simples é nos vender qualquer ideia, nos convencer de qualquer coisa, nos fazer acreditar que não temos direito de questionar.”
Não é à toa que nos querem generalistas e fora da faculdade. Além de gastarmos os tubos com cursos online vazios de pensamento crítico para nos adequar a mais uma “tendência do mercado” a cada nova estação, permanecemos analfabetos de mundo, caindo facilmente em discursos falaciosos, nos isolando e desaprendendo a aprender. Uma vida sem profundidade é uma vida muito útil para quem não a vive.
Não sei se isso ainda faz sentido, mas na minha época o legal para os jovens era ser meio rebelde (embora eu mesma tenha ficado rebelde depois de velha). Talvez nessa era, ser rebelde signifique estudar. Então, bora ser gauche na vida! Seja um rebelde, abra um livro! Não contrate um mentor, valorize o seu professor.
Antes de me despedir, um leve disclaimer porque ainda estamos na internet: este texto não pretende romantizar a vida acadêmica, que tem diversos problemas, como falta de financiamento, falta de direitos trabalhistas, comparações irreais, exploração de mão de obra discente, excesso de cobranças que levam muita gente ao burnout (falamos disso no Instagram, inclusive), dentre outras questões. Mas esses problemas não invalidam o papel das universidades e da produção de conhecimento científico que são singulares e continuarão sendo apesar dos pesares.
Eu ando muito no Substack, então vou indicar textos de newsletters de novo:
“o que as pessoas interessantes fazem?”, da Newslenta
“A inauguração do mundo”, da Tristeza de Estimação
“Sobre o consumo impulsionado pelo Instagram”, da Todas as Coisas
“o feminismo não errou”, da Lorena Portela
A personalização está nos isolando? E o que os cartazes da Netflix têm a ver com isso
Por que é (quase) sempre horrível viralizar na internet?
Que bonito o 'slow content', mas a gente combinou com o algoritmo?
A vida que você quer vai dar trabalho. E não estou falando do seu CLT.
Nunca é tarde para fazer o que você quer, só que, às vezes, é, sim
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Me mandaram esses vídeos de mini coachs e isso estragou meu dia. Me deu uma sensação de desesperança tão grande e ao mesmo tempo uma indignação… Fiquei pensando nisso por semanas.
É um desserviço tão grande convencer jovens de quê o estudo não vale à pena. É um crime na minha cabeça!
Espero que o seu texto chegue em pessoas que estavam caindo nessa armadilha, pois não dá para permitir que esse tipo de pensamento continue se perpetuando por aí.
Eu como pesquisadora que acabou de fechar o doutorado só tenho a concordar. Levei muitos anos pra entender algo que eu sentia: estudar, conhecer, aprender...são tarefas que mudam a forma como vc pensa, como vc raciocina. E durante a faculdade vc vai começando a duvidar das certezas. Especialmente das certezas dos outros. É muito interessante mesmo. Mas é muito individual tbm. As pessoas não falam mt disso. Ótima reflexão. A gente tem msm é que se unir como sociedade, pq estamos todos sendo manipulados.