A personalização está nos isolando? E o que os cartazes da Netflix têm a ver com isso
Ou um mundinho todo feito para você
Este texto vai ter uma discussão sobre cartazes de cinema, streaming, personalização, algoritmo e como viver em um mundinho feito para gente pode ser perigoso. Pega um cafézinho, se puder, porque a conversa vai ser um pouco mais longa. E eu juro que as coisas se conectam no final.
Sabe aquela história de escolher um livro pela capa? Eu sempre escolhi filmes que queria assistir pelo cartaz, fosse no cinema, nas antigas locadoras de vídeo ou agora nos streamings e com as miniaturas do YouTube. Os cartazes não são só imagens de um filme ou de um vídeo: eles nos dizem muitas coisas sobre o que esperar do que você vai assistir, já reparou?
Cartazes de cinema
Alguns anos atrás, escrevi um artigo acadêmico sobre os cartazes do filme ‘Meia Noite em Paris’ e sobre cartazes de cinema de comédias românticas e dramas românticos em geral usando semiótica. Vou resumir brevemente — e de maneira simplificada — aqui porque acho que vai fazer sentido com o que quero discutir neste texto. Eu peguei dois cartazes do mesmo filme, que são os seguintes:
Para quem não viu esse filme, ele não é nenhum romance especificamente. Até tem uma história de romance, mas ela é secundária. A trama central acompanha um escritor, Gil, que viaja a Paris e se deixa tomar pela nostalgia de tal forma que volta no tempo e conhece personalidades dos anos 1920 que sempre admirou. Fica, então, em um dilema sobre viver nesse tempo do passado ou permanecer no presente. O primeiro cartaz conversa mais com essa premissa: o personagem centralizado, cercado pela cidade — que é essencial na história —, e em um misto de realidade e fantasia dado pela mistura da fotografia com a pintura de Van Gogh.
O segundo cartaz traz outros temas para o centro, o que é bem curioso. Gil divide o protagonismo desse cartaz com sua noiva, Inez, que é super secundária no filme. Na verdade, o romance em questão nem é com Inez e, sim, com uma mulher que Gil conhece no passado. Mas no cartaz, o filme parece ser sobre esse casal e sua possível história de amor, não parece? A chamada “Tudo pode acontecer na Cidade Luz”, nesse caso, parece até conversar mais com um possível romance do que uma história fantástica de viagem no tempo, né? O fundo da cidade no plano visual é quase apagado. É Paris, mas poderia ser outro lugar. Não dá para saber.
A ideia de um cartaz de cinema é manipular o espectador a ver aquele filme, ou melhor, encontrar espectadores interessados naquele tipo de filme, certo? Por isso, eles não só passam algumas pistas sobre a história que será tratada, mas sobre o gênero e mesmo um “clima” do filme que pode agradar a determinadas pessoas.
E já que eu falei em gênero, é possível observar certas práticas visuais comuns a determinados gêneros cinematográficos. Veja bem, dramas românticos costumam ter uma certa expressão visual, enquanto comédias têm outra. A ideia é você bater o olho e já ter uma noção do que esperar. Dá uma olhada nesses cartazes de filmes que são considerados dramas românticos no IMDB:
Dá para ver algo em comum, certo? Geralmente, a história do drama tem a ver com uma perda amorosa, ou seja, os protagonistas já estão juntos ou ficam juntos ao longo do filme — e vou chamar isso aqui de uma “conjunção amorosa” — e aí um grande obstáculo se coloca entre eles e eles se separam. Pode ser uma doença, um acidente ou algo assim. Os protagonistas podem até terminar juntos (se um dos dois não morrer), mas não antes de enfrentar uma grande dificuldade.
Então, repare que, visualmente, os cartazes mostram um casal ao centro nesse momento de “conjunção”. Eles estão voltados um para o outro, olham um para o outro ou se beijam. Há grande intensidade nessa união. Eles aparecem em close ou plano médio (dificilmente de corpo inteiro) e o fundo, o cenário da história, pouco importa. As expressões dos atores indicam o foco no outro, ou a paixão em si. Olhos fechados e meios sorrisos vão construindo os efeitos de dramaticidade. As cores são harmonizadas, especialmente em tons claros, e há sempre muita luz, vindo principalmente de trás da figura do casal e destacando as expressões de seus rostos.
Pois se você vê um cartaz com essas características, sem pensar muito em tudo que eu falei, já tem um palpite de que é um drama romântico. E, veja, essas são exatamente as características do segundo cartaz de “Meia Noite em Paris” que eu mostrei lá em cima. Curioso, não? Porque a história não é sobre isso.
Mas talvez os estrategistas de marketing do filme tenham querido vendê-lo assim para chegar a um público maior. Explorar as figuras de dois atores que comumente fazem drama romântico (a Rachel McAdams aparece em vários dos cartazes, afinal) pode ter sido uma escolha nesse sentido. Talvez não seja à toa que esse cartaz tenha circulado mais nos cinemas do Brasil. É provável que nosso público se interesse mais por esse tipo de filme do que por fantasias de volta no tempo…
Um parênteses só pra mostrar para vocês como os cartazes de comédias românticas seguem outro estilo: o casal aparece em plano mais afastado, geralmente de corpo inteiro; eles não estão voltados um para o outro, comumente estão olhando em direções opostas ou só um dos dois parece interessado no outro; ou, ainda, lançam um olhar cumplice ao espectador; as cores são mais fortes, saturadas e têm maior contraste, etc. As comédias românticas têm um arranjo narrativo diferente: começam com a “disjunção amorosa” e necessariamente terminam em conjunção, ou seja, o casal começa se odiando ou se estranhando e acaba junto.
E os cartazes da Netflix?
Tá, mas e o streaming? Os cartazes do streaming têm função parecida: procuram te engajar para assistir àquele título, certo? Mas há uma diferença em relação ao cartaz que era afixado no cinema ou da capa do DVD na locadora. Se nesses casos, a informação sobre o público que ia receber aquela comunicação era mais ampla — por exemplo, a hipótese de que o público brasileiro se interessa mais por drama romântico do que por fantasia artística — agora, a plataforma de streaming sabe muito melhor com quem ela está falando.
Isso porque ela tem muitos dados sobre nós. Não só os dados que damos no cadastro, como gênero, idade e localidade, mas informações sobre o que a gente gosta de assistir. Os títulos que a gente abre, que a gente larga pelo meio, que a gente vê repetidas vezes, e algumas até nos pedem para dar estrelinhas depois de assistir, né? Com o tempo, isso gera um histórico bem rico das nossas preferências e de quem a gente é enquanto espectador. Tanto que as plataformas criaram perfis para quem tem plano família: para separar o que o pai e a filha assistem, por exemplo.
Produzindo conteúdo original, as plataformas ficam responsáveis por todo o material de divulgação de um determinado filme ou série e, assim, crian os cartazes que serão exibidos para as pessoas. E mais, podem personalizar que cartaz aparece para quem. Afinal, uma mesma série pode gerar diversos cartazes. E cada cartaz pode abordar um aspecto diferente daquele conteúdo.
E já que há tantos dados sobre os usuários, por que não exibir para eles os cartazes mais de acordo com suas preferências e o que estão mais inclinados a assistir? A Netflix faz isso com seu conteúdo original, você já reparou? Eu resolvi fazer um teste. Entrei no meu perfil e no do meu pai e procurei pelas mesmas séries. Olha só o que aconteceu:

Meu pai é um homem mais velho que gosta de assistir suspense, drama, séries policiais e algumas novelas. Eu sou uma mulher mais jovem que assisto romances, cinebiografias, séries de comédia, filmes mais cabeça, mas também reality shows de gosto duvidoso.
Quando procurei pela série ‘Adolescência’, a plataforma mostrou um cartaz destacando o pai para o meu pai e para mim mostrou um cartaz do filho. Talvez porque o meu pai se identificaria muito mais com a figura do pai, sendo ele mesmo um homem mais velho. O mesmo aconteceu com ‘13 reasons why’: para o meu pai, uma figura do pai em destaque, enquanto para mim um cartaz meio drama romântico. Quando procurei por The Crown, pro meu pai apareceu a figura masculina do príncipe William em primeiro plano, enquanto, pra mim, apareceu um close na princesa Diana. Você pode me dizer que é aleatório, mas eu não acredito.
Esses cartazes dão no mesmo play do mesmo conteúdo, mas a chance de eu e meu pai clicarmos para ver aumenta consideravelmente quando essa personalização toda é levada em conta. É como se essas séries fossem feitas pra gente, embora definitivamente não sejam.
Talvez seja uma promessa falsa, que nem o segundo cartaz de ‘Meia noite em Paris’? Talvez. Mas aí você já clicou, já começou a ver. Se vai gostar ou não, interessa menos do que o fato de estar fisgado dentro da plataforma e…gerando mais dados. Afinal, se você odiar e fechar rápido, já é mais uma informação útil sobre o tipo de conteúdo que pessoas como você gostam ou não. É mais uma amostra que vai compor o tal do BIG DATA.
Mas e daí?
Tá, legal, a Netflix tá dando uma manipuladinha na gente para assistir mais coisa. E daí? E daí que essa ideia de conteúdo personalizado não está só na Netflix. Ela está nas redes sociais, nos sites de lojas que a gente compra que já oferecem tudo que a gente tem maior propensão a querer, etc. A quantidade de dados que produzimos e disponibilizamos sobre nós diariamente permite um grau de personalização cada vez maior. E isso vai nos enredando em uma espiral de consumo: não só de produtos, mas de conteúdo.
E isso pode ser bem perigoso em diversos sentidos. Não só de você gastar todo o seu rico dinheirinho na Shoppe ou na Temu e passar duzentas horas vendo conteúdo personalizado no TikTok ao invés de viver o mundo real, como pode acabar nos colocando em um vórtex de viés de confirmação. Com isso, eu quero dizer que a gente pode começar a rejeitar tudo que não é personalizado.
Diz aí se você não anda com menos paciência para opiniões alheias muito diferentes da sua? Dá uma enorme vontade de nem ouvir? A sensação de não ter tempo a perder anda grande e ver e ouvir coisas que, em tese, não são do nosso interesse vai se tornando insuportável. Mas o que, afinal, é do nosso interesse? Como a gente pode descobrir coisas diferentes que nos interessam se a gente só fica reiterando comportamentos que já deram certo, que já deram “match”?
Por que eu só posso ver um filme se ele já for parecido com um outro que eu já gostei? Por que eu não posso ouvir uma outra perspectiva diferente da minha sobre um assunto? Por que a gente fica girando e girando em torno dos mesmos discursos e das mesmas referências?
Por que é bom para gente? Não. Pode ser muito confortável e parecer que sim, mas não é bom para gente de verdade. A gente se isola, a gente perde a empatia, o olhar para fora, o senso crítico, o interesse pelo diferente, pelo novo. A gente perde um pouco a vida. A vida não muda e vira apenas uma repetição das mesmas coisas, nas mesmas bolhas.
A vida fica meio chata. Fica todo mundo meio igual. E a gente fica meio intolerante. Você tem sentido isso em alguma medida?
Eu sei, eu comecei isso aqui falando de cartazes na Netflix e tô falando que estamos ficando mais intolerantes. Mas a verdade é que está tudo relacionado mesmo, você não acha? Nem que seja só um pouquinho. A gente vai ficando confortável em uns lugares para aceitar desconfortos maiores do que deveria em outros.
A personalização pode ser uma delícia, mas, olha, também pode ser uma bela porcaria. Talvez eu só queira ver um negócio que não foi feito para mim, mas que foi feito pra gente, sabe? E você?
Se você leu até aqui, parabéns! Brincadeira! Mas obrigada por ter lido. Então, me conta:
Até terça que vem!
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Adorei a análise dos cartazes!
Sinto a mesma coisa no Spotify. . teoricamente deveria ser uma plataforma que pode expandir os horizontes e no fim parece que fico mais aprisionada no tipo de música que gosto e conheço, sempre que quero algo novo preciso perguntar a amigos, porque sozinha eu não vou longe
Adorei sua análise, Mariana!
Eu decidi cancelar minhas contas de streaming porque, além de não estar assistindo, me sentia presa. Eu gosto de "caçar filmes", gosto de buscar referências, de ir atrás, sabe? Gosto muito de assistir aos clássicos, de escolher um diretor e me debruçar sobre a obra dele. Aí a lógica do algoritmo não me serve, porque tira a minha autonomia. E aí eu estava perdendo o prazer que sempre nutri pelo cinema. Mas no final é isso, né? Nos querem dependentes, sem senso crítico, infantis até, eu diria.