Por que é (quase) sempre horrível viralizar na internet?
Ou o probleminha semiótico da viralização
Outro dia, o YouTube me sugeriu um vídeo de uma criadora de conteúdo de literatura, a Mayra Sigwalt, que falava sobre como o Booktok, ou seja, o nicho de livros do TikTok, era uma grande enganação. Ela contava que, em um treinamento da própria rede social, os funcionários sugeriam que os criadores postassem dois vídeos POR DIA se quisessem ter sucesso. Como isso é totalmente incompatível com quem faz conteúdo sobre livros e demora, no mínimo, uma semana para ler cada um, ela meio que tinha decidido que lá não era lugar para ela. E aí a Mayra falou uma coisa que eu achei muito curiosa a princípio, mas que também depois me pareceu meio óbvia, que era: “eu não quero viralizar”.
Pareceu estranho isso saindo da boca de alguém que trabalha com influência, mas o que ela disse a seguir fez total sentido: ela quer previsibilidade de números para mostrar para possíveis anunciantes; ela quer ter alguma garantia do que esperar quando posta um vídeo. Não adianta muito para um influencer ter um vídeo com 1 milhão de views e outro com 500. É preciso ter alguma constância para construir um trabalho nessas plataformas. Mas isso vai muito contra um certo senso comum na internet de que sucesso de um conteúdo é viralizar, né?
Quando eu viralizei
Daí eu lembrei das poucas experiências pessoais que eu tive com viralização (ora, vejam). Eu viralizei uma vez no Twitter e uma no TikTok. E eu me estressei para caramba nas duas. Como esperado, a do Twitter foi pior. Eu tinha feito uma crítica a um vídeo de um grande influencer que estava se propondo a falar de um conceito do campo de humanidades (que não era a área dele) de uma forma super rasa. Eu achei que estivesse falando ali de forma irônica com os meus 250 seguidores. Mas o negócio começou a ser retuitado e saiu totalmente de controle.
Felizmente, o influencer nunca me respondeu. Mas seu séquito veio com tudo para cima de mim. Foi um showzinho de horrores e precisei fechar a conta e tirar as notificações, porque não aguentava mais tanto homem me xingando.
Na vez em que viralizei no TikTok foi mais light, mas ainda assim apareceram os haters. Foi com um vídeo de viagem: eu comparava duas experiências de lugares para ver o pôr do sol em Campos do Jordão e em Cunha (SP) e como em Campos era uma armadilha de turista daquelas.
O que não parecia muito controverso, rapidamente se tornou: criticaram o jeito que eu narrei o episódio, disseram que a comparação não fazia sentido, me xingaram por eu ter sugerido programas em cidades diferentes que nem ficam tão próximas assim, reclamaram que eu não tinha sido precisa na minha descrição geográfica do lugar e por aí vai.
Viralizar pode levar uma pessoa ou outra a ser conhecida de uma maneira boa. Mas geralmente a experiência de “sair da bolha” é péssima. Sabe por que? Porque tem um probleminha semiótico de base aqui.
Probleminho semiótico de base
Acho que nunca comentei aqui, mas eu tenho um doutorado em Linguística/ Semiótica (pois é!). Então, eu sou meio contaminada e não consigo pensar nas coisas fora desse frame. Mas às vezes ele é bastante útil. Para quem não sabe, semiótica é uma teoria e metodologia de análise do discurso, o que quer dizer que a gente tem umas ferramentas para tentar entender como um texto faz para dizer o que diz.
A questão é que a semiótica entende um texto (e com texto, eu estou falando não só de algo escrito, mas tudo que a gente chama de “conteúdo” na internet) como uma conversa entre um enunciador (aquele que fala) e um enunciatário (aquele para quem se fala). Até aí, tranquilo, né? Essa é a chamada teoria da enunciação.
O que complica um pouquinho é que esse enunciador não é a mesma coisa que um autor, porque ele não é a pessoa de carne e osso que escreveu ou produziu um vídeo, mas um perfil que se inscreve no texto, que deixa suas marcas nele.
Do mesmo jeito, o enunciatário não é exatamente você que está me lendo agora, mas um perfil de enunciatário que foi inscrito também no texto no momento em que ele foi produzido, como se fosse alguém em quem eu estava pensando enquanto escrevia.
Por exemplo, eu não estou escrevendo este texto para doutores em semiótica, senão este parágrafo não existiria. Se algum deles estiver me lendo (oi, Marcos! oi, Luiza! eu sei que vocês assinam esta news), este parágrafo vai parecer desnecessário pra eles, porque eles não são exatamente o perfil de enunciatário que estou projetando aqui, sabe?
E aí é que está o problema. Embora textos de forma geral tenham potencial de chegar a qualquer pessoa e não só as que “dão match” com seus perfis de enunciatário, as redes sociais levaram isso a um nível meio bizarro. E isso tem a ver com meu ponto principal deste texto. Segura um pouco que eu vou chegar lá.
Pensa comigo em duas situações, uma receita de torta alemã em um site de receitas online (tipo o Panelinha, da musa Rita Lobo) ou esta receita no TikTok. A receita pode ser a mesma e ela pode até estar em vídeo no site, mas as práticas que envolvem os dois textos são muito diferentes.
Práticas na internet
Você provavelmente vai cair na receita do site depois de uma busca no Google por “torta alemã receita”. Se você não for meio doida, provavelmente procurou por isso porque está pensando em fazer uma torta alemã. Isso quer dizer que você provavelmente quer fazer e pode comer uma torta alemã. Você provavelmente gosta de torta alemã, você não é diabético ou intolerante à lactose e você deve saber o mínimo sobre cozinhar doces.
Mas se o vídeo da receita cai no seu feed na “For You” do TikTok, isso não necessariamente é verdade. Talvez você seja, sim, diabético e não goste de torta alemã. Você talvez não seja o enunciatário daquela receita. Aí, você pode passar o vídeo que não te interessa e seguir a vida ou…você pode fazer o famoso comentário: MAS E EU?
Mas e eu?
Eu tenho certeza que você já leu este comentário por aí. Ele é um clássico nos vídeos de receitas, mas acontece em qualquer assunto: “Mas será que não dava para fazer sem açúcar?” “Poxa, mas e se eu não gostar de chocolate, como faz?”. “Ah, mas eu tenho intolerância a glúten”. Meu bem, esse texto não era para você. Nem tudo que está na internet é para você, mesmo que a página do TikTok se chame “For You”.
Isso porque, por mais que a gente saiba que quando coloca alguma coisa na internet ela possa ir parar em qualquer lugar, a gente não espera que ela vá mesmo parar em qualquer lugar. E a gente constrói o nosso texto com um certo público em mente (o tal do enunciatário). Mas quando um conteúdo viraliza, o alcance bizarro o leva para pessoas que não são as que você esperava. Não foi para elas que o seu texto foi feito.
Mas, espera aí! E daí que um conteúdo não foi escrito ou pensado para essas pessoas? Quando a gente vai a uma livraria e vê livros que não nos interessam a gente só não compra, né? Não era para ser assim com qualquer coisa? Aí entra a prática de novo.
Aí entra a prática de novo
O Instagram e o TikTok têm um algoritmo de recomendação, que promete mostrar conteúdos personalizados, especialmente para você, certo? Então, é isso que você espera quando abre o seu feedzinho precioso. E quando você é impactado por uma receita cheia de creme de leite sendo um intolerante à lactose (a gente sofre), você fica meio incomodado.
Porque aquilo está quebrando uma expectativa criada ali de que aquilo que apareceria seria pensado para você. É por isso que tanta gente tem o ímpeto de comentar algo desse tipo. Já reparou que a gente só tem vontade de comentar em coisas que nos geram ou deslumbramento ou incômodo? Pois é, mas isso é papo pra outra news semiótica (se vocês não odiarem demais esta).
Então, qual o problema de viralizar?
Eu disse isso tudo para concluir o que talvez seja óbvio: o problema de viralizar é que você vai sair da sua bolha, e com isso vai encontrar muitos usuários que não vão combinar com o seu perfil de enunciatário. Aí você vai ver que eles não vão entender o que você quis dizer, vão tirar de contexto, os valores deles estarão de tal maneira em choque com os seus, que eles serão tomados por paixões avassaladoras. Eles vão te xingar. Muitas vezes, não haverá argumentos racionais e eles vão xingar a sua aparência ou vão implicar demais com um erro de digitação.
É claro que com um alcance enorme, você também vai encontrar muita gente que era enunciatário do seu texto e que vai passar a te seguir e isso vai ser legal. Mas, geralmente, não vale a carga de ódio que chega dessas pessoas que não queriam ouvir o que você tinha para falar. Sabe como é bom crescer em redes sociais? Devagar e sempre. Constância e solidez. Um pouco mais de previsibilidade.
Talvez eu esteja falando isso mais para mim mesma do que para vocês? Talvez.
Bom, esta news foi um pouco uma experimentação, porque eu trouxe um pinguinho do meu conhecimento acadêmico para a mesa. Eu queria saber se vocês amaram ou odiaram e se a minha tentativa encontrou pessoas reais que combinaram com o enunciatário. Então, me diz aí…
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Eu sempre lia essa palavra e admito que não fui pesquisar nem nada... aí seu texto trouxe um pouquinho da área de estudo e com exemplos práticos. Adorei!!!
Eu, que não sou criadora de conteúdo nem nada, me sinto incomodada de publicar coisas nas minhas próprias redes quando vejo que o número de gente ultrapassou do meu controle (geralmente umas 30 pessoas), daí talvez não interesse pra minha tia do interior que eu fui num show de uma cantora chilena semi conhecida no Brasil. Toda vez que uma rede cresce demais, eu abandono e passo a postar menos e esse texto me fez perceber o porquê.