O exercício performático ainda é saudável?
Um app para fingir percursos de corrida e a academia exclusiva
Estou há mais ou menos um ano dizendo que vou voltar a correr. Mas toda vez que ensaio engatar, dou de cara com um mundinho que não me pertence e que ando chamando de “o exercício performático de Instagram”.
Ele me lembra o motivo para ter odiado me exercitar na infância e na adolescência. O problema é que eu nunca fui boa: nunca fui muito coordenada ou graciosa em matéria de mexer o corpo, sabe? E, naquela época, ninguém falava realmente em fazer exercício para ser saudável. O que importava era ser bom, atlético, magro, habilidoso, etc. E ser bom nos exercícios te tornava mais popular.
Hoje, fala-se muito no papel da atividade física na saúde, mas até que ponto o que andamos fazendo por aí é, de fato, saudável?
Semana passada me deparei com duas coisas que meio que provam o meu ponto de que esse exercício performático — a ideia de fazer uma atividade física mais para mostrar para os outros do que para nós mesmos — realmente existe. E como existe!
A primeira foi a notícia sobre um aplicativo que simula percursos de corrida falsos para serem postados em apps como Strava ou Maprunner (espécies de redes sociais de corrida). É isso mesmo que você leu. O app chama “Fake My Run”. A ideia é você ficar sentado em casa, mas postar no app que fez uma corrida sensacional com um pace ótimo. E mais: o aplicativo é pago. Você tem que desembolsar 42 centavos de dólar para baixar cada percurso falso. Isso daria uns 60 reais por mês se você quisesse postar um “tá pago” todo dia.
O cara que criou o app gosta de falar nas redes sociais que é tudo uma grande piada, uma grande crítica dele à cultura da corrida performática. Mas é uma crítica que já rendeu mais de 200 mil pessoas baixando o app e mais de 500, de fato, postando corridas falsas pagas. Ele deve estar achando bem engraçado.
A segunda coisa foi uma história no mínimo curiosa que um amigo contou. Ele faz musculação com frequência e ficou animado quando viu que ia abrir uma academia nova bem na sua rua em um bairro de classe média do Rio de Janeiro. Entrando em contato para saber mais sobre o novo empreendimento, ele foi direcionado para um grupo de Whatapp e recebeu a seguinte mensagem (coloquei XX só no nome da dita academia):
“🚨 Atenção, membros do Grupo Prime!
Em breve, vamos abrir o formulário seletivo para definir quem realmente estará qualificado para fazer parte da XXXXX.
Aqui, não é para todo mundo. Estamos formando uma comunidade exclusiva, com pessoas que realmente compartilham nosso padrão, nossa visão e nossos valores.
Preparamos um cronograma completo para que você entenda, em cada detalhe, o que significa ser parte da XXXXX:
📅 CRONOGRAMA DA XXXXX
21/06 – Envio do formulário de qualificação
22/06 a 24/06 – Apresentação dos diferenciais
25/06 – Início oficial da pré-venda
Este será o seu guia para entender por que a XXXXX é diferente de tudo o que você já viu.
Fique atento aqui no grupo — as vagas serão limitadas e cada etapa faz diferença”
Meu amigo ficou tão embasbacado que não permaneceu no grupo para saber quais eram esses valores, diferenciais e toda a qualificação que um aluno precisa ter para entrar em uma academia. Imagina? Quase fazer um processo seletivo até para se inscrever em uma academia quando muitas vezes a gente não consegue nem levantar da cama para se exercitar? Praticamente uma entrevista de emprego para entrar no mundo fitness.
Mas, bom, a ideia é esta mesmo: exercício não é para todo mundo. É só para quem, de fato, entrega resultados. Esse vocabulário todo de trabalho aqui não é à toa. O campo dos exercícios virou também um lugar de produtividade.
Existe, assim, uma pressão nas redes sociais — e fora delas também, mas principalmente nesse ambiente performático do Instagram — para entregar resultados com a atividade física, sejam números impressionantes na esteira, no Strava, no spinning ou no crossfit, seja um corpo esculpido e incompatível com uma vida que não seja de atleta.
Os resultados no exame de sangue, que provavelmente são os números mais significativos e importantes, ficam em segundo plano. A disposição, a qualidade de vida, os efeitos na saúde mental: tudo isso é só consequência e não fim. Aliás, me pergunto se quando alguém entra nessas pilhas erradas o resultado na saúde mental não é até negativo.
A última escolha para o time
Tudo isso me faz olhar para o lado e me sentir um pouco com 12 anos de novo na aula de educação física. Quem já foi a última escolhida para a equipe de handebol sabe o sentimento. Você simplesmente acha que não é para você. Mas a questão é que tem que ser para você. Exercício físico tem que ser para todo mundo. Eu realmente demorei para entender isso, mas é regra básica de saúde. Depois dos 30, o sedentarismo simplesmente não é sustentável. Você precisa se mexer para não ter dores, para não perder massa muscular, para aguentar fazer os esforços do dia a dia.
Mas além de não querer entrar para a “academia diferenciada” ou o clube do pace, eu não tenho tempo para isso. Toda essa exigência de performance e consumo que está sendo vendida como um combo ao ato de se exercitar simplesmente não é sustentável para quem tem obrigações com trabalho e família ou simplesmente prioriza outras coisas na vida.
E eu nem vou entrar na conversa do fetiche da proteína. Sobre isso, recomendo que vocês vejam o vídeo da Rita Lobo no Instagram e depois leiam esta edição aqui do Jornal do Veneno da
.Meu ponto aqui não é atacar quem leva o exercício a sério, corre maratona ou tem a turma do crossfit. Esse movimento de tornar a atividade física “cool” de novo é legal. Que bom se você tiver se achado em um esporte e isso estiver te fazendo bem por aí. Que bom se uma prova ou uma turma te motivam a continuar.
O que não é legal é trazer isso para aquela velha lógica da meritocracia, da otimização de si mesmo e ressaltar discursos que só servem para nos sentirmos insuficientes ou sempre ficando para trás. Discursos ótimos para nos vender coisas, inclusive, de personal a roupas que vão melhorar os treinos.
Eu ainda não voltei a correr, mas gosto de pensar que minha inspiração para isso não é nenhum influencer bombado e nem coach cheio de técnicas. Minha inspiração é ninguém mais, ninguém menos que o Dráuzio Varella, que começou a correr aos 50, faz maratonas, mas só porque é bom para a saúde mesmo.
Sentir prazer no exercício físico é uma virada de chave, mas é para ser um momento seu. Não é uma coisa que você faz para postar ou para dizer que fez. Não que você não possa postar. Mas o objetivo não pode ser postar, entende? Você não tem que pagar nada para ninguém.
Fora que nem todo mundo precisa correr uma maratona, né? Talvez baste dar uma caminhada com frequência. A minha volta para a corrida vem aí, mas eu vou deixar a performance para os atletas que dedicam suas vidas a isso. Sentir um ventinho no rosto três vezes na semana vai ser meu único objetivo.
E você, o que me diz?
Na semana passada, a edição da newsletter fechada para apoiadores foi um ensaio sobre a obra de arte na era da inteligência artificial. Se você perdeu, vem ler aqui.
Sobre esse assunto do texto de hoje, gostei deste texto da
que corrobora muito do que eu disse: “#26 talvez você não deva (e muito menos precise) correr uma maratona - sobre hobbies e performance”Tem também este carrossel do blog Zona Cinza que tá sempre atual. E mais este aqui do
e este aqui lá da nossa página do Tempo de Qualidade no Instagram."Jogo da Velha 15: sobre a beleza – na escrita e na cara", da
Este texto em inglês sobre a “banalidade do algoritmo” de
E para quem escreve newsletter, tem os últimos textos da minha outra news :
A tal da taxa de abertura da sua newsletter e outras métricas
Imagens na sua newsletter: algumas dicas
Criei esta seção aleatória hoje para recomendar outras coisas que não são textos e nem necessariamente são novas mas que eu descobri este mês e gostei:
Passei a usar o ‘Food to save’ com frequência e estou amando. A padaria de fermentação natural aqui perto de casa tem cestas maravilhosas e super completas pela metade do preço. Aprendi que dá certo congelar pão e depois esquentar no forno, então é 10/10. Para quem não conhece, é um app que liga os mercados e restaurantes a consumidores que estão dispostos a comprar itens com validade próxima por um preço bem mais em conta. A parte ruim é que você não escolhe os itens. Eles fazem uma cesta, você compra e pega na loja ou podem te entregar em casa. Eu não recomendo muito para mercado, porque pode vir basicamente qualquer coisa, mas se for um daqueles estabelecimentos perto da sua casa que você sabe que só tem coisa que você gosta, vale demais! E ajuda a não jogar comida fora, o que eu acho ótimo. Se você quiser experimentar, cadastrando-se por este link tem um cupom de desconto.
Minha vida mudou depois que adquiri um carrinho de feira. É sério! Mesmo que você não faça feira (no caso, eu faço toda semana), ele é muito útil para ir ao mercado a pé também. O que eu comprei foi este aqui, que tem compartimento térmico e rodinhas que sobem degrau. Não foi barato, mas tô tão satisfeita que indico para todo mundo.
Duas coisas que vi na Netflix e amei: “Homem com H” e a série de “Cem anos de solidão”. Cantamos a música “Bandido Corazon” do Ney a semana inteira aqui em casa e não paro de fazer piadas péssimas sobre comer terra em momentos de estresse e insatisfação. Entendedores entenderão.
Eu podia ouvir várias vezes este podcast sobre o futuro da música com o
. Aliás, ele tem uma newsletter bem interessante por aqui chamada .
Introdução alimentar para adultos ou quando umas fichas caem sobre o seu prato
A vida que você quer vai dar trabalho. E não estou falando do seu CLT.
Todos os textos de Tempo de Qualidade
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Adorei ler esta sua reflexão! Fui mãe pela primeira vez há 4 meses e quero muito voltar a fazer exercício físico (fiz um ano de yoga, duas vezes por semana, antes de engravidar), mas não me estou ainda sentindo preparada e ver toda a gente a performar fitness me stressa. Ganhando coragem 🤞🏻
Sensacional, concordo 100%. Lembrei também da galera que "falsifica" pace no strava. Nunca consegui entender, mas acho que, no fundo, é o que você traz: provar algo para os outros, exercício performatico.
Me identifiquei com a inspiração no Dr Drauzio. Minha amiga me deu o livro dele antes de eu correr minha primeira meia. Devorei ele todinho. Muito incrível, bons ventos na cara no seu retorno à corrida 💜