O algoritmo não trabalha para você
Ou quando dois internautas entram num bar
É quase o início de uma piada ruim: dois internautas entram num bar, um viciado em TikTok e outro que tem horror ao app. O que não gosta diz que os vídeos gritam demais, que é tudo bizarro, que não entende nada. O que ama diz com convicção: “é que você não treinou o algoritmo”. E com o sorriso no canto de boca de quem sabe um segredo tão valioso quanto uma patente de transistor, o amante da rede chinesa começa a explicar ao outro as maravilhas de um algoritmo de recomendação “trabalhando para você”. Já viu essa cena por aí? Mas será mesmo que esse treinamento nos dá acesso aos vídeos mais preciosos enviados à rede mundial de computadores?
A ideia de aprendizado de máquina (machine learning) é muito sedutora mesmo. Com mais dados e treinamento, os algoritmos iriam aprendendo com a gente sobre o que a gente gosta de ver e ficariam muito bons em nos dar exatamente o que queremos ou mesmo o que nem sabíamos que queríamos, mas descobrimos que queríamos demais. Talvez você já tenha experimentado essa sensação: a descoberta. Ela é tão deliciosa quanto inesperada! É como aquele namorado que chega com uma caixa de chocolate na terça à noite ou aquele amigo que te dá de aniversário um livro que é a sua cara e você nem conhecia.
Hoje em dia, é difícil a gente ser supreendido. Tudo meio que precisa dar ‘match’. Não só o app de relacionamentos. Pense em quando você vai comprar alguma coisa. Você simplesmente entra na loja, vê o mais barato e compra? Ou você entra na internet e compara preço em cinco lojas diferentes, vê dois vídeos, lê três resenhas e sete avaliações do produto antes de fechar a compra porque você precisa do mouse sem fio perfeito? E se não tiver da cor que você queria, você procura em outra loja com o custo de três cliques, no máximo. Há algumas semanas, falei um pouco sobre esse quase fetiche da personalização. E a isso soma-se uma certa intolerância ao erro. Afinal, como podemos errar se temos tanta informação, tantos dados, tantos parâmetros de controle?
Você já se pegou dando like em um vídeo mais para mostrar ao algoritmo do que você gosta do que para sinalizar para a pessoa que fez aquele vídeo que você gostou? Aliás, você lembra quais foram as contas que fizeram os últimos vídeos que você curtiu no TikTok ou no Reels do Instagram?
Às vezes, o algoritmo de recomendação, que funciona agora muito descolado de quem escolhemos seguir, despersonifica o conteúdo. Você pode ver a cara de alguém e em segundos passar o vídeo e nunca mais achar aquela pessoa. Alguém pode te ensinar algo super legal e você nem saber quem é — e mesmo se tinha qualificações para dizer aquilo. Dá para pensar até que a noção de autoria vai ficando mais difusa (e você pode imaginar a complexidade disso…).
No excesso, a falta
O algoritmo aprendendo com você é esse grande trabalhador focado em te deixar satisfeito, um stalkear muito meticuloso. Certo? Nem tanto. Você já percebeu que mesmo com esse treinamento todo e uma quantidade absurda de conteúdo online, mesmo que você veja várias coisas de seu interesse, também vê um bando de coisa, digamos, insatisfatória? Mesmo com todo esse esforço, ainda rola um vazio, uma falta.
E é essa falta que impulsiona a próxima busca, com a certeza de que num rolar de mais alguns vídeos, algo vai te surpreender, te dar um grande insight sobre a vida, o trabalho e todas as coisas. O algoritmo só precisa de mais uma calibradinha e pronto.
Mas, no fundo, você sabe, não sabe? Sabe que a máquina não apenas aprende em um espaço vazio em que só você está ali direcionando o seu funcionamento. Você sabe que há um contexto, que aquela rede está concorrendo com outras, que as pessoas que estão ali têm suas próprias agendas, que essas pessoas respondem a uma agenda maior que não é do algoritmo (porque o algoritmo não é um alguém, é apenas um meio), mas da rede social. E você sabe que a rede social não é uma plataforma flutuando no espaço digital — mesmo que ela queira te fazer acreditar que é. A rede social é uma empresa. Uma empresa que visa lucro e tem interesses próprios.
Pode parecer que o algoritmo de recomendação trabalha para você. Afinal, ele responde aos seus estímulos, ele corrige os erros que você aponta nessa árdua tarefa de te entreter. Mas você não é o chefe dele, não é nem mesmo um cliente. Os clientes são as empresas que pagam por anúncios na plataforma. O chefe, bom, você sabe quem é.
O algoritmo trabalha para a rede social e, em parte, para seus anunciantes. O algoritmo é um código escrito por programadores da redes social e não é por se adequar a algumas manifestações de preferências suas que você tenha qualquer controle sobre ele.
Agora, sobre porque o amigo que odeia o TikTok só vê tranqueira e gritaria é conversa para outra news. E, sim, eu tenho muito a dizer sobre isso.
E você, é o internauta que treinou o algoritmo ou é o que só vê bizarrice? Eu confesso que já fui os dois. Me conta!
Agora os links de indicações da semana:
O texto “Sobre como o algoritmo tentou me tornar bolsonarista” alugou um triplex na minha cabeça quando o Victor Hermann postou lá no Instagram, mas agora descobri que ele está também aqui no Substack com o blog
. Tem muito a ver com o que falamos aqui.“As pessoas mais cool do momento são as mulheres 50+”, da
“Será que realmente precisamos de um diagnóstico de altas habilidades?”, da
“Vamos tornar a ostentação cafona novamente?”, por
“A mala do Rubinho”, por
Essa edição aqui da “Tá todo mundo tentando”, da
Ah, e teve esse post no Linkedin (sim, Linkedin!) que me deixou pensando à beça. E esse TEDxSaoPaulo do Emanuel Aragão.
Na minha outra news, esta semana rolou um post sobre como configurar o seu e-mail de boas-vindas no Substack e como fixar um post na sua home caso você também tenha uma news e esteja perdido.
Zuckerberg quer saber seus pensamentos mais íntimos
A personalização está nos isolando? E o que os cartazes da Netflix têm a ver com isso
Que bonito o 'slow content', mas a gente combinou com o algoritmo?
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Adotar um cachorro e chamá-lo de Algoritmo para dizer que o estou treinando.
Então, Mariana. Comigo acontece da seguinte maneira.
Eu nasci em 1970. E no final dos anos 80 me envolvi com tecnologia para nunca mais me afastar. Sendo assim, quando o mundo ainda era analógico, eu já era adulto. E por isso as redes sociais não fizeram parte de uma etapa decisiva da minha vida. Aquela em que definimos o nosso papel como seres sociais.
"Os papéis sociais envolvem expectativas sobre como uma pessoa deve se comportar em determinada situação, bem como os direitos e deveres que lhe são atribuídos."
Dessa forma, as gerações que cresceram após o advento dos algoritmos de persuasão, acabaram definindo seu papel social também nas redes.
Como a interação no mundo real é ativa (você precisa provocar essa interação marcando um encontro ou puxando um papo) e nas redes sociais essa interação é passiva (o algoritmo te mostra coisas sobre as quais você tem algo a dizer e comentar se torna quase um dever cívico), o mundo real acaba perdendo terreno para o mundo digital, alienando as pessoas nesses dois ambientes que você descreveu (das suas preferências pessoais e de consumidor em potencial).
Portanto, a minha visão sobre esse cenário recai sobre a educação. Precisamos criar um plano pedagógico onde as escolas ensinem o futuro cidadão a lidar com mais essa faceta da economia, lidar com sua própria condição de lead potencial.
Não sou presunçoso a ponto de não levar em consideração que posso estar falando com um alcóolatra que diz que pode parar quando quiser, mas ouso afirmar que posso voltar a viver em um mundo analógico caso acontecesse um cataclisma digital e o mundo retrocedesse ao tempo dos meus vinte e poucos anos.