'Mas isso sempre existiu': será que o sofrimento digital é diferente?
Ou os embates geracionais que realmente importam
Eu sei que muita gente odeia falar em gerações, — esse até é um tema no qual pretendo me aprofundar futuramente — mas eu tenho tido cada vez mais dificuldade em não comparar as experiências e estilos de vida de antigamente (pré-Internet) com os nossos dilemas de hoje. Parece sempre que é diferente. Parece sempre que ficou mais difícil. Embora tudo nos levasse a crer que ficaria mais fácil.
Lembro de algo que a minha bisavó dizia quando via alguém reclamando das notícias na TV: “O mundo nunca esteve tão bom”. Era o que ela, como uma pessoa nascida no início do século XX, sentia depois de passar dos 80 anos. Mas a minha bisavó morreu em 2001 e não viu a Internet e o desenrolar de tudo que culminou no nosso mundinho de hoje.
As gerações passadas tiveram que lidar com crises econômicas, guerras, epidemias, ditadura, hiperinflação, machismo, racismo, péssimas condições de trabalho. Apanhavam na escola e em casa, não podiam falar de sentimentos, tinham suas sexualidades tolhidas, pouco podiam escolher profissionalmente. Não que a gente não tenha mais esses problemas, mas eu entendo a frase da minha bisavó. Ao mesmo tempo, eu sinto como se o mundo estivesse ficando mais difícil em vários outros aspectos.
E quando tocamos em cada um deles, a minha cabeça se divide em duas linhas de argumentação: 1) sim, o contexto mudou tudo, agora é mesmo muito mais difícil e 2) não, na verdade isso sempre existiu, só tá com uma cara diferente.
Dá para pensar sobre isso em termos de trabalho, relacionamentos, saúde, parentalidade, comunicação, etc. Muitas coisas existiam, mas não tinham nome, porque não era permitido falar sobre elas. Outras realmente são questões novas.
Vai dizer que não existia bullying na escola dos nossos avós? Existia e muito. Não tinha sobrecarga materna na época das nossas mães? Tinha e muito. Não tinha estresse no trabalho dos nossos pais? Claro que tinha.
Fiz um post bem popular nas redes sociais do Tempo de Qualidade uns meses atrás sobre ‘Por que os nossos pais não tinham burnout?' (inclusive, talvez eu aprofunde esse tema por aqui em algum momento se interessar a vocês). Mas antes de enumerar razões, lancei a pergunta: será mesmo que não tinham?
Primeiro, a gente não tinha esse termo no auge dos nossos pais no mercado de trabalho. Segundo, não se falava muito em saúde mental nessa época, então as pessoas simplesmente ignoravam o que estavam passando. Mas para além disso, há uma série de fatores que mudaram mesmo nas relações de trabalho e podem explicar por que tem tanta gente chegando num esgotamento.
Talvez o meu incômodo todo venha de dois aspectos específicos da era digital e que talvez expliquem porque tudo parece muito diferente mesmo: um de excesso e outro de falta.
O excesso
O excesso de informação faz a gente ter muito mais ciência de certos problemas e nos invade a vida de diversas formas. Se tinha bullying na época dos nossos avós, era um bullying que se limitava ao espaço da escola e a um grupo. O cyberbullying de hoje pode significar uma criança ou adolescente não só experimentando isso na escola do mesmo jeito, como recebendo mensagens abusivas em casa, de madrugada. Mensagens de muitas pessoas, mensagens anônimas. Fotos roubadas, alteradas ou criadas com IA para causar vergonha. Mentiras espalhadas como rastro de pólvora. E tudo registrado, revisto o tempo todo, pronto para ser remoído diariamente.
O excesso de comparações: se sempre teve aquela história da sua prima bem-sucedida que é assunto no Natal ou a vizinha que trocou de carro, agora não precisam nem te comparar. Você mesmo se compara com gente irreal da internet o tempo todo, gente que você nem conhece. E, pior, gente que nem tem tudo que faz parecer que tem.
Tem também o excesso de apelo de consumo: as coisas duram menos e são feitas para durarem menos, você já reparou? E há uma vitrine de lojas na palma da sua mão pra comprar tudo novinho. Eu lembro que um dos programas favoritos do meu avô muito antes da internet era “sair para olhar as modas”. Basicamente, dar uma volta na rua para ver o que se estava vendendo (mas sem comprar nada, claro). Hoje, você nem vai atrás disso. Os produtos saltam na sua cara. E você se vê querendo comprar tudo.
Ah, e tem o excesso de opções em absolutamente tudo: do que você vai pedir no aplicativo de comida, ver no streaming, até a pessoa com quem você vai resolver sair no app de relacionamento. “Ah, mas que grande drama ter tantas opções para escolher”, talvez a minha bisa pensasse ao ler esse lamurio.
Mas aí entra o tal do paradoxo da escolha e, sei lá, nossos cérebros não foram mesmo preparados para escolher entre tanta coisa. Não somos capazes de processar tantos dados e sair com uma resposta rapidamente. Talvez seja por isso que terceirizamos esse trabalho para a inteligência artificial…os tais dos algoritmos de recomendação. E confiamos muito neles, mas eles vivem nos dando rasteiras, não é mesmo? Afinal, eles não trabalham pra gente, por mais que a gente esqueça disso.
A falta
Se por um lado é tudo demais, de outro nos falta uma coisa que era muito importante para as gerações anteriores: comunidade. E eu não tô falando das antigas comunidades do Orkut ou do séquito de alguns influenciadores que se denominam uma comunidade. Já foi repetido à exaustão por podcasters e articulistas o provérbio de que “É preciso uma vila para criar uma criança”, mas sempre vale voltar a essa ideia. E não só sobre criar crianças.
Quando eu falei que a sobrecarga materna sempre existiu, eu não falei que ela tinha uma grande diferença em relação ao que experimentamos agora: você não vivia isso sozinha. Embora hoje tenhamos parceiros muito mais engajados na criação das crianças (com sorte) e um monte de gente online contando suas histórias, a comunidade mais ampliada da vida real diminuiu. É cada vez menos comum a criança que é criada por vários avós, tios, primos. Os núcleos familiares estão cada vez menores: a gente mora mais longe da nossa família e a gente já nem conhece nossos vizinhos.
A internet prometeu nos conectar com todo mundo, mas a verdade é que nunca nos sentimos tão sozinhos. E nem sou eu que estou tirando isso da minha experiência: foi um grande assunto na SXSW a tal da saúde social.
A verdade é que nunca demos tão poucas festas, nunca encontramos tão pouco nossos amigos, nunca estivemos tão distantes das nossas famílias mais largas. Estamos nos fechando cada vez mais em um mundinho individual e neoliberal. A sensação é que não temos mais nada a aprender com as outras pessoas, pelo menos não as que a gente conhece e estão perto da gente. Afinal, tudo que a gente precisa está na internet ou a um clique de ser encomendado para chegar pronto à nossa mão.
O sofrimento digital é diferente, afinal?
No fim das contas, eu acho que sim, o sofrimento digital é diferente. Isso porque nós não só transferimos os nossos problemas para os espaços digitais. Esses espaços mudaram mesmo a natureza dos problemas. Em alguns aspectos, eles ficaram mais fáceis de lidar (pense em toda burocracia que foi facilitada), mas, em outros, as coisas escalaram de uma forma nada saudável. Não é à toa a grande crise de saúde mental e social que estamos (sim!) enfrentando.
Acho que o grande desafio é que as mudanças tecnológicas não vieram com um manual (mesmo que o seu PC nos anos 90 tenha chegado com um livrinho ilustrado). E mesmo que tivesse, não iria adiantar, porque as regras estão sempre mudando e mudando em uma velocidade aceleradíssima.
O que nossos pais e avós nos ensinaram sobre como solucionar as coisas muitas vezes não vai valer para esse novo mundo. E isso pode ser bem assustador, porque a sabedoria que passa de geração para geração era mesmo muito valiosa. Tão valiosa que construía toda uma comunidade, toda uma cultura.
Talvez a chave seja esta: a gente precisa voltar a criar comunidades de verdade. E não só online. Ninguém sai dessa arapuca sozinho. Disso, eu tenho certeza!
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Acho que essa frase do final resumiu bem: "O que nossos pais e avós nos ensinaram sobre como solucionar as coisas muitas vezes não vai valer para esse novo mundo."
É justamente isso, e é o cerne do motivo pelo qual o tal debate geracional é relevante, sim, na minha opinião. Não no sentido de criticar uma geração ou outra, mas no sentido de saber que, se uma geração tentar seguir o que deu certo pra anterior, pode dar muito errado, na verdade. Passa a ser uma questão de sobrevivência entender a mudança aceleradíssima.
Concordo e acho que é porque o algoritmo nos viciou a ter um mundo feito para nós, então não queremos passar por inconveniências que não sejam obrigatórias, e criar comunidades é incoveniente, porque tem q abrir mão do tempo só para você