É uma cilada querer voltar ao passado?
Dores e delícias da nostalgia ou aquele quentinho no coração perigooooso
#News 8
Ultimamente, eu andei sonhando com uma vida sem celular. Queria ver filme só no cinema, ouvir música em disco, fazer uma mixtape no lugar de uma playlist, escrever à mão em um caderninho, numa máquina de escrever barulhenta, conversar em um telefone pesado, passeando com ele dentro do quarto até onde o fio permitisse. Queria usar calça de cintura alta em paz, escolher uma revista na banca e um DVD na locadora. Putz, ultimamente eu ando nostálgica! Do jeitinho que só uma millennial consegue ser: sonhando com coisas que pouco fez.
Talvez porque a minha geração foi a última a viver um período analógico, ainda que na infância/adolescência. A gente se lembra de modos de vida demais, diferentes demais, que mudaram rápido demais. Aí, às vezes dá saudade. E, ultimamente, quando a ficha caiu sobre o que as novas tecnologias realmente estão representando, quando os olhos entusiasmados se tornaram aterrorizados, a vontade de apertar o botão de voltar está cada vez maior.
Um dia eu fui impactada no Instagram por um perfil gringo chamado “The offline club” (é, pois é, um clube offline no Instagram!). Eu fiquei meio fascinada! Eles diziam promover encontros em que as pessoas passavam horas com celulares proibidos fazendo coisas normais da vida, tipo ler, desenhar, conversar: “jovens estão revivendo os anos 90”, dizia uma legenda. Aquilo parecia uma delícia! E, meu deus, por que tão distante?
Eu fui criança nos anos 90, mas sempre me imaginei uma jovem na cafeteria de Friends, vestindo um coletinho e vendo anúncios de apartamentos no jornal. Isso nunca aconteceu. Será que a solução seria um escapismo de realmente fingir que estamos em outra época? Talvez isso fizesse bem para a minha saúde mental, cheguei a pensar, até cair na real.
Fiquei fantasiando com esses cafés sem telefones. Como se a subtração desse aparato tecnológico fosse suficiente para fazer a mágica acontecer. Não é. Não dá para desinventar nada e nem voltar no tempo. Mas a verdade é que a própria fantasia sobre voltar no tempo é uma cilada. Porque mesmo se fosse possível, seria uma merda. O passado não é isso tudo que a gente pinta. A memória pode ser muito seletiva, ainda mais quando a gente está mais fantasiando do que lembrando de fato.
Outro dia, eu vi o filme “Priscilla”, da Sofia Coppola, com o ponto de vista da Priscilla Presley sobre a relação dela com o Elvis. O filme se passa nos anos 60 e a estética é toda bem delicinha. Mas a relação deles é super problemática, para dizer o mínimo. Hoje, a gente diria sem pestanejar que é abusiva. Se você parar qualquer pessoa na rua e mostrar o filme hoje, a chance dessa pessoa dizer que aquilo ali não tá legal é uns 80%. Mas se você olhar pro Elvis com os olhos de outrora, ele não era um homem muito diferente dos outros de seu tempo. Ele poderia ser como o seu avô (só com mais fama, dinheiro e remelexo, claro).
Era meio que normal o homem que impedia a mulher de trabalhar ou ter coisas na vida dela além dele e dos filhos, era normal um cara que só trabalhava e voltava para casa querendo contar suas coisas sem nenhum interesse no que a companheira tinha a dizer. Não era incomum um marido meio agressivo, meio estourado. Hoje, a gente sabe que tudo isso ainda existe, mas é visto de outra forma. Porque estamos em outro “espírito do tempo”. Se antes um cara como o Elvis do filme era normal, hoje ele é um babaca. E isso faz muita diferença.
Tempos mais simples?
Eu sei que a gente ainda não entendeu como vai usar a tecnologia de forma realmente razoável, eu sei que a política tá um horror no mundo todo, que a crise climática bate na porta e todo mundo ignora e que guerras e ditaduras ainda existem e são extremamente cruéis. Mas isso não quer dizer realmente que tudo antes era melhor e “mais simples”.
Não é só sobre os direitos das mulheres que eu estou falando aqui, é sobre tantas coisas. Outro dia, vi também uma matéria (infelizmente, perdi o link) sobre como as modas ruins dos anos 90 estavam voltando, especialmente o cigarro e a magreza extrema. Às vezes, a gente esquece que “é, tinha isso”.
Os “tempos mais simples”, na verdade, eram tempos mais simplificados, em que não tínhamos espaço para um bando de discussões, nuances, sentimentos, trocas, encontros. Não tínhamos espaço para ser um monte de coisas. A verdade é que todos os tempos tiveram seus problemas e nós evoluímos em muitas coisas mesmo que tenhamos criado problemas novos.
A nostalgia ainda toma conta de mim de vez em quando. Mas eu sei que ela é um sentimento complexo, como é complexa a vida. Às vezes, é importante lembrar de outras formas de viver que já vivemos para saber justamente que as coisas mudam. E vão mudar de novo. Essa é a grande certeza. E já que a gente não tá muito feliz com o estado das coisas (alguma vez realmente esteve?), isso é uma boa notícia. Quem sabe não dá para direcionar a mudança para um lado que faça mais sentido?
Sobre isso, quero trazer duas recomendações: este vídeo do Ora, Thiago sobre nostalgia e essa newsletter (em inglês) sobre o Fim da Era Extremamente Online.
Ah, e acho que essa conversa tem a ver com essa news antiga, caso você não tenha lido: Sua relação com as redes sociais não é um problema só seu
Mesmo com esse contraponto todo, eu ainda estou encontrando prazer no analógico, no meu bullet journal, nas músicas antiguinhas, no meu tempo offline. Acho que dá para ser nostálgico de um jeito saudável, sem entrar numa paranoia de realmente querer viver em outra época. Essa aqui é cheia de problemas, mas foi a que nos deram. Estou mais numa vibe de parar de só reclamar do capitalismo e tentar fazer alguma coisa. Talvez um começo seja conversar com quem está com os mesmos sentimentos.
Me fala o que você acha disso tudo?
Em tempo, a newsletter deu uma crescida boa na última semana, ironicamente por causa desse texto aqui sobre Por que viralizar na Internet é (quase) sempre horrível. Fiquei muito feliz com todo mundo que interagiu por aqui e deixou comentários.
Se você está me lendo na sua caixa de e-mails, considere conhecer o Substack, onde esses textos são publicados. Lá tem muita coisa interessante e você pode interagir com os textos. Eu sei, eu sei! Tô indicando mais uma rede social quando a conversa toda é sobre usar menos, né? Mas talvez lá seja um espaço para redução de danos. Minha experiência até agora é de textões interessantes e muito menos superficiais do que os posts que geralmente lemos por aí nas outras plataformas e interações mais cordiais.
Ah, e aos novos assinantes pagos: primeiro, muito obrigada por apoiar a minha escrita! Vocês não sabem como eu fico feliz. Tenho um plano de começar a fazer conteúdos exclusivos para vocês em breve.
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Até a próxima terça!
Muito real isso de sermos a geração que vivenciou dois (ou mais?) modos de viver distintos. Isso nos deu uma perspectiva muito única que vai perdurar pra vida toda.
Eu também já tive alguns desses surtos analógicos, kkkk. Acho que o que me deixou mais investido foi comprar discos de vinil e falar que ia começar uma coleção (é, não vingou).
Recentemente, redescobri a marcenaria, e ela, sim, está sendo uma experiência analógica interessante. É muito bom ter a possibilidade de fazer uma pausa no trabalho digital e ir serrar uma tábua pra continuar algum projetinho.
O interessante é que o surto dos discos de vinil veio de estímulos externos: ver pessoas com suas coleções, ver esses posts sobre estilo de vida "old school", "vintage", etc. Nós, millenials, precisamos aprender que esses estímulos não são necessariamente bons pontos de partida pra começar novas atividades ou hábitos.
Já a marcenaria tem um certo histórico na minha vida, por ter visto meu pai fazendo, já ter ferramentas herdadas, uma bancada de trabalho, etc. Claro, fui complementando com aprendizados digitais, mas aí fica sendo um uso melhor da tecnologia e da disponibilidade das informações.
As mudanças do mundo foram tão rápidas que parece que eu fui criança/adolescente em outra era geológica. Muitas coisas me fazem falta, mas como uma pessoa que tem um medo gigantesco de dentista, eu só consigo pensar: Obrigada pelo avanço da tecnologia nos tratamentos odontológicos! Eu aceito qualquer outro "contra" do avanço da tecnologia só por conta desse "pró". Louca? Simplista? Talvez!