E se 'A Substância' for sobre o seu eu online?
'Vocês são uma só', mas lembre-se de ser a 'sua melhor versão'
#News 10
(os spoilers vão ser leves, mas você foi avisado)
“Vocês são uma só”, repetem as instruções para usar a substância no filme protagonizado por Demi Moore e indicado ao Oscar. Eu confesso que não sou muito fã desse filme como a maioria das pessoas com quem conversei. Talvez porque eu não seja muito fã de terror de forma geral, talvez porque eu só não tenha curtido muito mesmo. Mas isso não me impediu de ficar pensando bastante nele por dias. Essa não é uma resenha, nem uma crítica, é só um ensaio sobre um tema que está ali mas não foi muito comentado.
É claro que o filme trata de padrões de beleza, de pressão estética e de envelhecimento. São bem óbvias (bem mesmo) as referências a procedimentos estéticos, especialmente em todo o contexto de L.A, Hollywood, etc. Mas eu fiquei pensando em uma outra leitura também sobre essas duas personagens que são uma só, a Elisabeth Sparkle (Demi Moore) e a Sue (Margaret Qualley).
Quando a proposta do filme foi colocada, eu achei que a Sue seria apenas a versão jovem da Elisabeth e que a substância fosse uma espécie de poção de rejuvenescimento, mas não era bem isso. A Sue era, na verdade, uma “versão melhorada” da Elisabeth. Não era só uma questão de rejuvenescer, era o caso de “torna-se a sua melhor versão” mesmo. A Sue é a Elisabeth, mas também não é. Isso te lembra alguma coisa?
Para mim, lembrou as nossas versões online. A sua versão do Instagram é você, mas também não é. É uma versão melhorada e recortada de você, só dos seus melhores momentos. E, adivinha só: quando a gente tá mal, se sentindo feia, insuficiente e cheia de questões, a gente simplesmente não aparece. Não posta. Vive a vida offline e geralmente trancada em casa igual a Elisabeth.
Quando a gente constrói uma ‘persona perfeita’ online, passa a ter vergonha da nossa versão real. O ódio que a personagem da Demi sente de si mesma reflete muito o que as meninas criadas pela internet sentem ao se compararem com pessoas irreais, com versões filtradas delas mesmas. Não é por acaso que tanta gente anda fazendo plásticas para ficar parecida com os filtros do Instagram. É como ter uma versão perfeita de si mesma projetada na sua frente, mas inalcançável no espelho.
O seu avatar online pode permanecer jovem enquanto você envelhece, pode se apresentar só de maquiagem e com filtros para uma pele sem imperfeições. Com aplicativo de edição e agora até de inteligência artificial, pode ser mais magro que você, ter os dentes mais brancos ou mais o que você quiser. Quanto mais nosso avatar se aperfeiçoa, mais o reflexo real no espelho parece inadequado e indigno de ser exposto.
O paralelo ainda funciona quando pensamos que são duas personas que não se apresentam juntas: uma precisa dar lugar à outra, porque elas habitam espaços diferentes. E quanto mais a online cresce e ocupa os espaços que não deveria ocupar, mais ela vai degradando a pessoa offline. Quanto mais a online faz sucesso, menos você quer ficar offline.
Por isso, rolar um feed de pessoas no Tinder, escolher e ser escolhido, pode parecer mais interessante do que realmente sair com alguém. Sair implica ter que adequar a pessoa offline à online que foi apresentada àquele outro que te escolheu sem te conhecer de verdade. E isso pode ser mais difícil do que deveria.
O elemento da internet não é muito abordado na trama do filme, é bem verdade. Mas ‘A Substância’ só poderia ser um produto dos anos 2020 mesmo. Por mais que a pressão estética sempre tenha existido e nos anos 90 todo mundo quisesse ser magra como as modelos nas revistas, a tecnologia levou o negócio a outro patamar. Antes era um desejo distante e apenas imaginado. Agora, é possível emular todos os dias essa versão aperfeiçoada de si mesmo, vivê-la como se ela fosse outra pessoa que saiu de um rasgo nas suas costas.
É compreensível a vontade de se transformar nela e deixar aquela outra versão para lá. Mas não dá. Lembre-se: Vocês são uma só!
Algumas indicações de textos que eu li nos últimos tempos e gostei (nem todos são recentes):
“Formas de enxergar o tempo”, por Fabiane Guimarães
“A quem serve os nossos cérebros apodrecidos?”, por Desirée F
“A internet morreu. Viva a internet!”, pela Contente.vc
“As cartas que nos trouxeram até aqui”, por Aline Valek
“Fantasia Polonesa”, por Isadora Sinay
Ah, e fica aí a pergunta, você gosta desse tipo de texto como o da news de hoje?
Esta semana, também testamos o recurso de narração do texto da news (aquele player lá em cima). Não prometo fazer isso sempre, mas pode ser legal para quem gosta de ouvir lavando louça, no carro ou na academia. Deixa eu avaliar se vale a pena o esforço:
Perfeito! Seu texto me fez refletir do início ao fim!